O Globo
Por Luiz Roberto Londres
Prezado senhor ministro: escrevo este artigo em função de duas declarações recentes envolvendo o atendimento médico com as quais não concordo. Não vejo má-fé nessas declarações, mas elas demonstram um profundo desconhecimento da atividade de nós, médicos.
Mês passado, esta declaração apareceu na mídia: “Ministro da Saúde diz que pacientes ‘imaginam’ doenças”, seguida de alguns comentários seus. Gostaria de fazer algumas considerações a respeito. Há quase 50 anos eu, um iniciante na prática médica e com boa clientela, fiz um comentário a meu pai, renomado cardiologista, que dividia seu consultório comigo: “Meu pai, estou frustrado; fui bom aluno, estudei muito, tenho uma boa clientela, mas metade dos pacientes que aqui chegam não tem doença física”. Resposta de meu pai: “Só metade? Será que você está ‘adoecendo’ alguns?”
Uma boa conversa minha com os pacientes já mostrava a possibilidade de “doenças imaginárias”. Problemas pessoais, familiares ou sociais levavam a sintomas que costumavam ser resolvidos com a simples conscientização do paciente. E grande parte deles saía da consulta sem qualquer medicação ou pedido de exame complementar. Solicitava que voltassem à consulta e praticamente todos retornavam “curados”. Sempre levei em conta que o paciente não se restringe apenas a uma pessoa física; ele é muito mais que isso, é um ente biopsicossocial, como bem ensina o filósofo espanhol Ortega y Gasset: “Yo soy yo y mi circunstancia”. Não atendemos doentes apenas, atendemos pacientes, pessoas inseridas em seu contexto de vida.
Outra notícia que gostaria de comentar: “Quem vai fazer proposta é o mercado, diz ministro da Saúde sobre plano popular”. Senhor ministro: a saúde não é um mercado, é, antes de tudo, um campo humanitário, social e beneficente. Mercado envolvendo seres humanos conheço dois: a prostituição e a escravatura; sendo que, nesses casos, por sua participação, a prostituta recebe, o escravo nada recebe. Na saúde, o paciente, direta ou indiretamente, paga.
A nossa “Constituição Cidadã” de 1988 define muito bem o campo da saúde, principalmente em seus artigos 196 e 199 em seu primeiro parágrafo. Não podemos considerar o que acontece em nossos dias e com a permissão daqueles que deveriam defender os princípios de nossa atividade, como algo “normal”, mas como uma doença que deve ser tratada. A mercantilização da medicina é uma monstruosa deformação, que visa a atender interesses privados à custa do benefício, tanto social quanto de seus usuários. Assim como a corrupção vigente, a medicina tornada um mercado não pode ser aceita simplesmente. Um olhar profundo, visando tratar uma doença e não apenas seus sintomas, nos mostraria pontos importantes a serem abordados, dentre os quais a formação médica hoje.
Senhor ministro: entendo que o senhor, formado em uma área de extrema objetividade como a engenharia, não perceba a enorme subjetividade em que está inserida a atividade médica. Cabe, portanto, reflexão de todos nós, principalmente do senhor, sobre o conhecimento necessário que se deve ter para se ocupar um posto de tal importância como o Ministério da Saúde.
Luiz Roberto Londres é diretor do Movimento Participação Médica.