Este artigo foi publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo, no dia 02.11.2022. Para ler no site do Estadão, clique aqui.
Por Eduardo Calderari, presidente-executivo da Interfarma
A discussão sobre a melhoria de acesso a diagnósticos e tratamentos pelos pacientes nos sistemas de saúde no Brasil ganhou força nos debates públicos nos últimos anos e tem engajado parlamentares e gestores públicos em busca de soluções para um desafio bastante complexo, que é equilibrar as limitações dos sistemas de saúde e a necessidade de atender adequadamente às demandas dos pacientes. Com o avanço das tecnologias da saúde e, consequentemente, com custos cada vez mais altos, essa tem sido uma conta cada vez mais difícil de fechar e que exige a contribuição de todos os atores do setor.
Um dos debates que ganhou força recentemente é a respeito do uso de limiares de custo-efetividade para a avaliação de incorporação de novas tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse mecanismo avalia a relação entre o custo de uma tecnologia e o ganho em saúde gerado por ela no SUS.
O assunto vem sendo discutido com mais afinco desde julho deste ano pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), quando realizou uma consulta pública sobre o tema (a CP n.º 41/2022). Após a audiência pública promovida pelo Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGITS/SCTIE/MS) em 22 de agosto e após pautar a 112.ª Reunião Ordinária da Comissão em 31 de agosto, a Conitec recomendou a aprovação da proposta de uso de limiares de custo-efetividade em 21 de setembro.
A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) esteve presente na audiência pública de 22 de agosto e vem se posicionando a respeito da decisão, alertando sobre a necessidade de compreender melhor a sua forma de utilização, os pesos sobre os fatores dados, sua metodologia de aplicação, seu uso enquanto instrumento jurídico e, principalmente, os impactos que serão gerados da maneira proposta e aprovada.
É fundamental que esse debate não se restrinja a um pequeno grupo, mas que alcance os diversos atores da cadeia e que seja possível considerar os inputs ou reflexões destes outros atores para que a recomendação contemple uma metodologia mais clara e mais bem estruturada. A Interfarma esteve presente na consulta pública e na audiência, participou – ao lado de outros atores do setor – e propôs diversos pontos de avaliação. No entanto, nenhuma das mais de 200 contribuições recebidas pela Conitec foram sinalizadas como aceitas ou disponíveis para diálogo quanto a aplicação.
Do ponto de vista metodológico, vários países ainda estão em dúvida quanto à utilização do limiar como um todo, porque este não é um cálculo simples. Especialistas em farmacoeconomia, países que já implementaram a metodologia e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda divergem sobre sua utilização. A medida é usada em larga escala em pouquíssimos países. Para o Brasil, o cálculo requer dados que nem sequer existem por aqui, como o histórico de eficiência de tecnologias anteriores. Além disso, é preciso considerar as complexidades de um país com dimensões continentais. Quais são as necessidades do nosso país? E qual é a disponibilidade de recursos que o País tem?
Atualmente, cerca de 165 milhões de pessoas dependem do SUS, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Portanto, a avaliação criteriosa do impacto que a proposta aprovada vai gerar é importante para não reduzirmos a discussão a raciocínios simplistas e muito preocupantes, como qual vida vale mais ou menos.
Em estudo recente realizado pela Interfarma em parceria com a consultoria Moka Info, foi feita uma análise histórica das decisões da Conitec para entender qual teria sido o impacto do limiar proposto nas decisões realizadas entre janeiro de 2015 a junho de 2022. Caso tivesse sido aplicado nas decisões analisadas, mais de 260 mil pacientes teriam deixado de ter acesso aos seus tratamentos.
A Constituição federal é muito clara: saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Nós não podemos permitir, enquanto representantes do setor da saúde e enquanto sociedade, que o governo reduza o acesso da população a medicamentos por uma questão financeira. Precisamos, evidentemente, tentar entender como podemos adaptar e reduzir esse impacto orçamentário, mas a saúde precisa ser vista como um investimento, não como um gasto.
O uso dos limiares, da maneira como foi proposto, é a pior solução, pois se trata de uma clara barreira no acesso da população às novas tecnologias de saúde que vêm sendo desenvolvidas. E estamos apenas no começo da primeira onda de tecnologias que estão sendo lançadas no mercado e que vão tornar esse desafio mais complexo daqui para a frente, caminhando para a medicina cada vez mais personalizada. Com uma metodologia incerta e critérios de avaliação desconhecidos, a tendência é de aumentar a desigualdade no acesso e prejudicar ainda mais a população brasileira.