Saúde tem remédio

Revista ABC Farma

No momento em que a Revista ABCFARMA se preparava para entrevistar o presidente da Interfarma (Associação da Indústria Brasileira de Pesquisa), gavetas de sua mesa eram estrategicamente esvaziadas.

No fim do mês de maio, ele deixaria o comando da entidade para se aposentar – depois de nove anos de profícua gestão e intenso diálogo com todos os agentes do mercado farmacêutico, sobretudo o governo federal. Na qualidade, agora, de presidente do Conselho Consultivo da Interfarma, ele continuará contribuindo para o aprimoramento do setor. Jornalista, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro da Previdência Social, Antônio Britto tem uma visão multifacetada do mercado – e, em sua presidência, transformou a Interfarma (que

representa 51 indústrias farmacêuticas de ponta) numa das entidades mais respeitadas do país.

Nesses quase 10 anos comandando uma das mais ativas e importantes entidades representativas do segmento, que característica da indústria farmacêutica ficou mais marcante para você?

A característica mais extraordinária da indústria farmacêutica é que ela é uma espécie de casa com janelas para três ruas. Uma delas é científica – pela capacidade de pesquisar, desenvolver e salvar vidas. Outra janela, importantíssima, abre para a vida econômica – o peso dessa indústria no Brasil e no mundo ultrapassa 1 trilhão de dólares. A terceira janela é para a questão humana e social do acesso aos medicamentos e, portanto, à saúde. Outros setores da economia têm uma ou duas dessas perspectivas. A indústria farmacêutica tem as três. Trabalhar nesse setor é um desafio extraordinário porque, ao longo de um mesmo dia, você interage com ciência, economia e questão social. E outra característica: não há nenhuma outra atividade tão regulada. Isso leva os dirigentes a uma convivência diuturna com o governo – que, além de regular, é o principal comprador do mercado.

Ter sido ministro da Previdência e governador do Rio Grande do Sul, portanto dono de grande experiência política, lhe deu alguma vantagem nessa convivência com Brasília?

Ficou menos difícil. O Brasil tem uma burocracia governamental muito complexa e cheia de peculiaridades – e a experiência que eu trouxe nos permitiu um pouco menos de dificuldades.

Se você tivesse de apontar uma grande conquista da Interfarma no período de sua presidência, qual seria?

O mais importante foi tornar a Interfarma, e em consequência a indústria farmacêutica, um personagem que dialoga com todo mundo. Essa indústria, no mundo todo, tem muita dificuldade de estabelecer um diálogo fluido com todos os segmentos, pois tem um pouco de autismo e timidez. Em consequência, as associações têm como primeiro e fundamental desafio sentar à mesa com todo mundo e, para isso, ter uma cadeira em qualquer mesa. Temos muito orgulho de que a Interfarma sabe hoje dialogar francamente com governo, médicos, pacientes. E, nestes dias em que preparo minha saída, tenho recolhido esse testemunho de todos os setores – que não necessariamente concordaram conosco o tempo todo.

Sendo uma associação de indústria de pesquisa, que busca inovação, as barreiras de regulação são sempre maiores para a Interfarma. Isso melhorou nos últimos anos?

Na Anvisa, clarissimamente, melhorou. Mas com o Ministério da Saúde é mais complicado, porque nada ali tem sequência. Nos nove anos em que presidi a Interfarma, trabalhei com sete ministros. Além do mais, está havendo no Ministério uma partidarização assustadora. Tive vida política e não acho pecado que um político seja nomeado para cargo técnico – mas com critérios técnicos. Isso é diferente de fazer uma gestão partidária, com preenchimento de cargos sem critérios numa área tão

delicada. O que se vê hoje é que, para dar palpites em saúde, você primeiro tem que se filiar ao PP. No térreo do Ministério da Saúde não se pede RG, mas carteira do partido. Chegamos a uma situação muito preocupante.

A Interfarma, em sua gestão, mobilizou o segmento em torno de temas fundamentais para a saúde no Brasil. Por quê?

Isso nasceu da constatação de que uma indústria como a farmacêutica, num país como o Brasil, não tem o direito de se ausentar das questões gerais de saúde. A agenda da indústria farmacêutica não pode ser só a agenda da indústria farmacêutica…Esse é um erro comum no país: alguém do setor hospitalar, por exemplo, tentando resolver o problema de seu setor sem que seja resolvido o problema dos remédios. Ou o setor de remédios achar que resolve seus problemas sem resolver os do SUS ou dos planos de saúde. Eu brinco sempre que o nome de nosso “filme” é “Condenados a trabalhar juntos”. Dentro desse espírito, sempre entendi que, naquilo que envolvesse saúde, deveríamos ter uma posição – que não necessariamente é a dos outros. Fizemos realmente uma política muito agressiva, através de publicações, eventos e reuniões, tentando dois objetivos: discutir melhor a saúde e em cima de propostas de todos os setores envolvidos. Nossa coleção, nesse sentido, é bem expressiva.

Um dos últimos temas tratados por sua gestão é o das mudanças no Programa Farmácia Popular. Qual é a posição da Interfarma?

É preciso contar um pouco de história. Lá atrás, ainda no governo Lula, havia uma quase maioria de farmácias do governo fazendo a distribuição nesse programa. Nas farmácias privadas, havia um co-pagamento de 10%. No período Dilma, o governo chegou à conclusão de que manter essas farmácias públicas saía muito mais caro do que estabelecer um acordo com as particulares – 80% do orçamento era custo. Uma segunda decisão foi distribuir alguns medicamentos de graça. A indústria fez um desconto substancial para permitir a viabilidade dessa segunda etapa do programa. E na época alertei, em nome da Interfarma, que era o primeiro programa que vi nascer cujo maior risco era o de dar certo. Dando certo, ampliaria enormemente o número de pessoas – e o custo. Não deu outra. O programa que inicialmente custava 800 milhões passou a custar 3 bilhões. Em vez de reduzir os impostos, responsáveis por 800 milhões desses 3 bilhões, em vez de voltar a exigir algum co-pagamento de quem pode pagar, o governo começou a reduzir os preços dos remédios – que aliás não tinham aumentado nesses sete anos. A decisão de reduzir mais ainda recomeçou na gestão Ricardo Barros – ele alegou que, ao comprar remédios diretamente, o Ministério paga mais barato do que quando faz o pagamento à farmácia – esquecendo de que, ao comprar diretamente, é ele que tem de distribuir. Ao comprar na farmácia, ele está pagando os medicamentos e os custos da farmácia. Isso vai levar, em poucas semanas, a um problema sério: farmácias saindo do programa, no mínimo o segmento de remédios para diabetes, onde a redução foi mais radical. Quem mais vai sofrer são as farmácias independentes, que dependiam mais dos clientes do Programa. Num segundo momento, isso afetará a indústria. Vejo com muita preocupação o futuro do Farmácia Popular. A curto prazo, desabastecimento. A médio e longo, problemas estruturais que não são enfrentados.

E isso é irreversível? Não dá para voltar atrás?

Acredito muito na força da “dona realidade”. Ela se impõe. Mais dia, menos dia, neste governo ou daqui a 20 governos, alguém vai se dar conta de que o Programa tem um problema estrutural: ele é fundamental, porque reduziu a hospitalização por várias doenças, mas precisa restabelecer alguma forma de co-pagamento ou o governo deve deixar de pagar impostos. Só no Brasil governo paga imposto para governo – estrangeiros não acreditam que isso seja verdade. Esses 800 milhões que o governo federal está pagando aos governos estaduais, se devolvidos ao Programa, permitiriam que ele crescesse pelo menos 30%.

Outra questão do mom
ento: o presidente Temer disse que promete estudar a reivindicação dos supermercados de vender medicamentos isentos de prescrição. Como a Interfarma se posiciona?

Temos tido a cautela de dizer o seguinte: hoje, e cada vez mais, o ato de vender um medicamento tem quer ser acompanhado de orientação quanto à armazenagem, dosagem, etc. As farmácias são o local para isso. Mas se com as farmácias já ocorre uma desatenção à melhor prescrição, imagine fora das farmácias. Que medicamentos poderiam ser vendidos fora das farmácias – e quais são os riscos disso? Dependendo, só pode ser na farmácia. Essa é uma decisão sanitária, não comercial. Usando só este último critério, vamos agravar o problema da automedicação ou efeitos colaterais não comunicados. Não estaremos trabalhando para melhorar a saúde, mas para piorar. O meu medo é que o Congresso ou o governo decida por razões comerciais.

Mesmo distante fisicamente da Interfarma, o que você espera assistir nos próximos meses no mercado farmacêutico?

Não há por que não prever crescimento e crescimento. É um setor à prova de crise, pela fragilidade do setor público na área de saúde. Isso do ponto de vista econômico. Do ponto de vista de acesso da população à saúde, tenho esperança de que o governo entenda que o setor, repito, pode ser comandado por um político – mas pensado e executado por quem entende do assunto. Espero que o pessoal que entende volte a frequentar o Ministério da Saúde – o que não pôde fazer nos últimos tempos. Estamos, por exemplo, com uma preocupante queda no nível de adesão às campanhas de vacinação. Estamos com uma grande fragilidade de financiamento e gestão no SUS. E um descompasso que gera judicialização para as drogas complexas. As PDPs (Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo) são uma boa ideia, mas pessimamente executada. Enfim, há diversas agendas que só uma gestão profissional, séria e competente, independentemente de quem seja o presidente, pode resolver.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *