O Globo
SÃO PAULO E RIO – Às vésperas do início dos testes com a fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, o governo de São Paulo já recebeu 800 mandados de busca e apreensão determinando o fornecimento da substância a pacientes com a doença. De acordo com o secretário estadual de Saúde, David Uip, isso pode até mesmo inviabilizar as pesquisas para verificar a eficácia do composto, que ainda não foi testado de forma sistemática em humanos. Segundo ele, o estado já precisou entregar a pacientes cerca de dois quilos (em pó) do produto.
— Estamos recorrendo a tudo, mas busca e apreensão tem que ser cumprido. Isso porque avisei, desde o início, que o estado comprou a substância para cumprimento de protocolo, para testes. Se não parar (de chegar mandado), como faço? — desabafou Uip ao GLOBO.
O secretário contou que aguarda aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (Conep) para o início dos testes clínicos, mas demonstrou preocupação com a quantidade de liminares obrigando o governo estadual a distribuir o estoque de fosfoetanolamina adquirido para realizar os estudos, encabeçados pelo Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp):
— Isso é absolutamente descabido e enlouquecido, porque o que nós encapsulamos é para o protocolo, não para distribuição. Se tirar a pílula do Icesp, não teremos como fazer a pesquisa. O compromisso do estado é comprar o número necessário de pílulas para cumprir o protocolo.
Sem autorização para encapsular o composto, função que ficou a cargo da Fundação para o Remédio Popular (Furp), o laboratório PDT Pharma, em Cravinhos, interior de São Paulo, que sintetizou e forneceu ao estado a fosfoetanolamina que será utilizada nos testes, está entregando a substância em envelopes lacrados e em quantidades determinadas pelos juízes, relatou seu diretor administrativo, Sérgio Perussi:
— Os mandados de busca e apreensão começaram há mais ou menos 15 dias. Agora, eu sinceramente não sei como as pessoas estão fazendo para tomar se a substância é em pó.
Não é a primeira vez que a Justiça determina a distribuição do composto, que ficou conhecido devido a relatos não comprovados de pacientes de que a pílula reduziu seus tumores. A substância vinha sendo distribuída informalmente por funcionários da USP em São Carlos até junho de 2014, quando a universidade decidiu interromper o fornecimento. Em meados do ano passado, no entanto, uma paciente do Rio conseguiu da Justiça autorização para obter o composto. Logo depois, centenas de outros pacientes obtiveram liminares obrigando a USP a entregar a fosfoetanolamina.
Já no início deste ano, a presidente afastada Dilma Rousseff sancionou lei aprovada pelo Congresso que autorizava a distribuição da “pílula do câncer” mesmo antes de estudos adequados sobre a sua eficácia e segurança, o que foi duramente criticado pela comunidade científica. A lei, porém, foi suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio. Mesmo assim, alguns juízes continuam concedendo liminares para pacientes.
— Se ficarmos no rigor do Direito, os pacientes não podem mais utilizar o medicamento. Mas, assim como verificamos em outros casos, vários juízes não acataram esta decisão por envolver a questão mais delicada de todas, que não está prevista nem em nossa Constituição: o direito à esperança de vida. É justo negar essa pílula se ela for a última esperança de uma pessoa? — considera o advogado Nelson Wilians. Já o advogado Sérgio Niemeyer discorda: — A decisão do STF que suspendeu a lei não é vinculante. O amparo legal destas decisões é constitucional, já que a Constituição traz garantias aos direitos à vida e à saúde. Como o câncer é uma doença que pode condenar à morte, não se pode tirar de uma pessoa o acesso a um tratamento, por mais que ele ainda não tenha um protocolo aceito pelas comunidades médica e científica ou registro. Estamos todos sujeitos a desenvolver câncer e neste caso cada um de nós gostaria de poder ter acesso a um medicamento mais promissor como este.
ANÁLISES REPROVARAM SUBSTÂNCIA
Testes em andamento com a fosfoetanolamina financiados pelo governo federal e conduzidos na Universidade Federal do Ceará, entretanto, já apresentaram resultados negativos. Segundo os estudos, o composto não mostrou eficácia na redução de tumores em roedores em laboratório. Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Gustavo Fernandes recomenda cautela e avalia que o melhor é esperar os resultados das pesquisas para saber se se deve ou não administrar a substância.
— A verdade é que não sabemos se estamos deixando de ajudar ao não administrá-la ou atrapalhando ao fazê-lo — pondera. — Mas também não se pode inviabilizar as pesquisas, pois sem elas não vamos ter uma resposta a esta dúvida. Elas são o único caminho.