REVISTA FEHOESP | POR FABIANE DE SÁ
O país corre o risco de perder o bonde da inovação por falta de uma política de atração da pesquisa clínica e pela existência de um sistema de saúde confuso que quer soluções imediatas para problemas de longa data. Esta é a avaliação de Antônio Britto Filho, ex-governador do Rio Grande do Sul, ex-ministro da Previdência Social e atual presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
Ele acha que o país está dando alguns passos na direção correta, mas ainda tem um longo caminho a percorrer. “Temos um sistema extremamente ineficiente, com um modelo de remuneração ultrapassado e achamos que podemos resolver tudo para ontem. Precisamos parar de apagar incêndios e pensar em planejar as décadas futuras. O que a gente está vivendo hoje é consequência dessa coisa imediatista.”
Jornalista por formação, o gaúcho de Santana do Livramento defende a união dos atores do setor em prol de um sistema sustentável e efetivo na oferta de serviços de saúde de qualidade à população. “Temos de parar de brincar de batata quente e empurrar a responsabilidade dos problemas para cada segmento. É muito ingênuo qualquer um achar que vai se salvar sozinho. Público, privado, medicamentos e indústria precisam estar juntos na busca por soluções”, garante.
Em entrevista à Revista FEHOESP 360, Britto ainda fala sobre custos, inflação médica, judicialização da saúde e analisa o cenário político e econômico do Brasil. “Nós temos uma tarefa muito complicada pela frente e este trabalho exige políticos responsáveis.”
Confira:
FEHOESP 360: Com o país imerso em uma crise político-econômica, as finanças estão entre as principais preocupações dos brasileiros. No setor da saúde não é diferente. Quais são os fatores determinantes que contribuem para esta situação?
Antônio Britto: Temos dois conjuntos de situação que levam ao que temos enfrentado. As pessoas estão vivendo mais e não podemos nos queixar disso. A tecnologia avança muito e não deve ser motivo de queixa. Estes são fatores mundiais que geram consequências para o setor, mas que não são negativos. Mas há um outro conjunto de situações que são tupiniquins, criadas, produzidas e mantidas pelo Brasil. Primeiro: temos um sistema extremamente ineficiente.
A descentralização que gera responsabilidade para municípios, Estados e União é evidentemente importante e fundamental para o Sistema Único de Saúde (SUS), mas a forma como estas obrigações estão repartidas e são tomadas as decisões no sistema público, fora de um planejamento regional ou nacional, é um verdadeiro crime. Segundo: a gente precisa e merece ter um sistema público, porém, a maioria das facilidades são privadas (os hospitais e os laboratórios de diagnósticos) e a interação entre o público e o privado é muito precária. Ainda hoje se vê pessoas ligadas ao SUS com restrições à participação da iniciativa privada, e, do outro lado, alguns poucos do segmento suplementar que imaginam que possa haver Brasil sem SUS. Estes dois grupos deveriam aproveitar o tempo e discutir a questão verdadeira que é como aprimorar a integração entre o público e o privado.
O terceiro conjunto de fatores decorre do descompasso entre o que a Constituição promete e o orçamento permite. A gente vê um sistema que na Carta Magna é público, universal, gratuito e integral, e um orçamento absolutamente incapaz de corresponder a isso. A partir daí o que todos os governos fazem: tentam fechar parte da porta de entrada. Eles limitam a incorporação de novas tecnologias, seguram ao ponto do estrangulamento a remuneração dos hospitais, mantêm um sistema que remunera muito mais a prestação de serviço do que a eficiência dele. Esta é a questão financeira do problema. Não podemos deixar que se crie um discurso de lamentar tecnologia e envelhecimento. Temos de enfrentar os nossos problemas.
360: O senhor disse que saúde no Brasil sofre de subfinanciamento há anos. Atualmente, a participação da pasta é de menos de 4% do orçamento da União. Então, qual a solução?
AB: Quando a gente olha o gasto total em saúde no Brasil, que fica perto dos 9%, não é um valor fora das proporções mundiais para países similares. O problema brasileiro é que o gasto público de pouco mais de 4% este sim é insuficiente para um sistema público. Então, a gente fica num jogo sem saída porque ninguém quer mexer na Constituição e reduzir direitos das pessoas, e nem deveria. Ao manter o direito e não recursos para atender estas prerrogativas, estamos empurrando as pessoas para a Justiça. Ao judicializar a saúde a gente desorganiza ainda mais o sistema. Só que a judicialização não é causa e sim consequência do problema. Mas, por sua vez, torna-se a causa do agravamento da questão do financiamento da saúde.
360: O estudo “O Custo da Saúde – Fatos e Interpretações”, realizado pela Interfarma em parceria com a Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), levanta algumas questões, procurando separar a inflação médica e os custos. Afinal, o que mais traz impacto para a cadeia da saúde?
AB: Precisamos examinar esta questão parando de brincar de batata quente. O setor da saúde é especialista nisto. O hospital joga a culpa para o plano, que joga para o medicamento, que joga para outro, e assim vamos nos enganando. É preciso mudar a forma como se discute saúde. Existe um problema que é qualquer um dos atores do setor achar que vai se salvar sozinho. Na minha opinião, temos de pensar no médio e no longo prazos. E tem aí várias questões centrais. A primeira: proteger os hospitais brasileiros, porque hoje são tudo: pronto-socorro, pronto atendimento, divã psicológico. Na medida que a rede básica não funciona, os hospitais são uma espécie de time de futebol sem zagueiro.
O hospital é o goleiro do sistema de saúde, mas sem proteção na sua frente. Todo mundo hoje vai direto ao hospital quando ele é, em qualquer sistema organizado, o ponto intermediário ou final. Em segundo lugar, a qualificação dos médicos no Brasil. Estamos fazendo uma coisa criminosa ao fechar os olhos para a vulgarização das faculdades de medicina, que estão gerando profissionais inseguros, que se protegem pedindo exames desnecessários, por falta de convicção e de experiência profissional. Também é preciso mudar o sistema de remuneração para ontem. Não é possível. Esta é uma das coisas mais estúpidas que existem no Brasil, que é um modelo de remuneração em que a qualidade, a eficiência e o resultado não contam pontos. Você compra o serviço e se é bem prestado e qual o resultado para o paciente isto não importa. Nenhuma destas questões se resolve em um mês, nem com as autoridades em saúde querendo fazer coisas a curto prazo.
Precisamos tentar agora para melhorar o 2020, 2030 e 2040. Mas o que acontece é que estamos com uma visão a curto prazo. Todo mundo ao apagar o incêndio de hoje está gerando um brutal incêndio para o futuro. Eu tenho dito que o curto prazo faz mal à saúde. O que a gente está vivendo hoje é consequência desta coisa imediatista.
360: O Brasil vem reduzindo drasticamente o investimento em pesquisa clínica: somente este ano houve um corte de 44% no orçamento para a área. Como a indústria se posiciona neste contexto? Há algum tipo parceria com a iniciativa privada para estudos científicos?
AB: Talvez uma das coisas mais vergonhosas que a gente tenha no Brasil é o fato de que somos o quinto mercado mundial em medicamento; temos ilhas de excelência extraordinárias em algumas instituições públicas, como o Instituto Nacional do Câncer (Inca), Instituto Butantan, Fiocruz, e em hospitais privados, como Albert Einstein e Síri
o-Libanês; e mesmo com esta capacidade e este tamanho somos medíocres em pesquisa clínica. Somo menos que a Argentina e a Colômbia. A Coreia é o quinto país do mundo em pesquisa e nós estamos brigando para ficar perto do 20º lugar. O fracasso da pesquisa clínica no país é a condenação do Brasil à dependência futura. Se a gente não faz parte do novo, vamos ter de comprá-lo. Estamos fora do jogo do futuro. Ficamos sabendo dele pela The Lancet e depois compramos o futuro porque estamos com uma estrutura muito atrasada. Este atraso vem primeiro do fato que a inovação no país é como o yoga: todo mundo fala bem, mas somente cinco ou seis praticam. Segundo: somos erráticos em inovação. Queremos inovar em tudo. Mas qual é o nosso forte? Onde queremos ser importantes? Ou a gente acha que vai destaque em tudo? E por último, não conseguimos fazer os amigos da universidade, sentar com os da iniciativa privada e com os do governo numa mesma sala.
Não existe inovação onde não existe integração entre o saber básico, que está sendo buscado na universidade; a aplicação dele em um saber prático que transforma o conhecimento em riqueza; e o financiamento, apoio e regulação pelo governo. Os cases de sucesso de inovação no mundo são: Irlanda, Coreia, a cidade americana de Boston e o Estado da Califórnia. Qualquer exemplo que se procure reúnem universidade, setor privado e governo. Aqui temos umas 14 áreas do governo envolvidas em inovação, já perdi a conta. Quem quiser falar sobre inovação tem de tirar um mês em Brasília até conseguir passar por todo mundo. Além disso, a universidade aqui, tirando raríssimas exceções, tem nojo desta história, pois acha que suja as mãos ao trabalhar com a iniciativa privada na busca por resultados objetivos. E o setor privado detesta o risco. Se você tem uma iniciativa privada, salvo exceções, que não arrisca, tem uma academia que constrói muro alto e fica lá dentro, salvo exceções, e se você tem uma brutal distorção dos esforços governamentais, não tem como inovar.
360: Quanto a indústria investe em pesquisa científicas para novos medicamentos?
AB: O mercado farmacêutico mundial é US$ 1,1 trilhão/ano. O gasto em pesquisa básica e aplicada mundial em saúde é algo em torno de US$ 250 bilhões/ ano. A gente não tem mais do que US$ 400 milhões em pesquisa no Brasil. É muito medíocre a nossa posição. Se você está em um país onde não existe inteligência cientifica, não tem criatividade, nem competência, tudo bem, você não tem inovação porque não tem quem inove. A coisa maluca que acontece aqui é que os jovens saem do Brasil para brilhar fora e não pode fazer em seu país a inovação que vão fazer lá fora. O caso brasileiro de não dar certo em inovação é pior do que a maioria dos países, porque eles não têm massa crítica para inovar. Aqui, temos e desperdiçamos, ou emprestamos para os americanos e europeus.
360: A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) sofrem críticas pela demora na liberação de novos medicamentos e a incorporação de tecnologias.Como melhorar este fluxo?
AB: Não podemos cair na pegadinha de querer reduzir as exigências sanitárias da Anvisa ou as normas da Conitec porque o primeiro dever da autoridade é zelar pela saúde da população. Não vamos resolver o problema com o órgão regulador facilitando, porque quem facilita ajuda a matar. Não se pode pôr no mercado o que não tem segurança, eficiência e qualidade. A saída para a demora não é facilitar.
Temos de festejar que a regulamentação é extremamente exigente. Isso é bom para a saúde da população e também para se vender medicamentos lá fora, porque existem regras para o remédio entrar em outros países. A Anvisa e a Conitec se deram conta que era preciso revisar e agilizar os processos. E sou otimista nisso, pois estamos menos pior em termos de prazos, ainda que haja coisas insuportáveis, como levar 1.500 dias para liberar o registro de um produto genérico. É um negócio que deve ser recorde mundial. E é evidente que enquanto isso não se resolve se está gerando judicialização, porque hoje todo muno sabe que em um determinado lugar tem uma tecnologia ou um medicamento melhor.
E a Constituição diz que é direito de todos, então o juiz manda conceder. Se as pessoas não soubessem o que tem de bom lá fora, não se gerava judicialização. Mas a internet e o “dr. Google” dizem que há outra saída. Tem de haver uma aceleração, que significa redução dos processos, sem que haja redução de rigor. Não queremos menos rigor, e, sim, menos burocracia.
360: Na sua opinião, para onde o Brasil está caminhando com o atual cenário político-econômico?
AB: A economia retomou o caminho da racionalidade e a gente tem de rezar e trabalhar para que o ano que vem as pessoas se deem conta de que a gente tem errado muito em termos políticos. É muito fácil dizer a culpa é dos políticos. O eleitor não tem culpa, mas tem responsabilidade. Se aparecer alguém amanhã dizendo que o Brasil tem soluções fáceis, rápidas e de curto prazo, esta pessoa é alguém excelente para não ser eleita. Nós temos um trabalho muito complicado pela frente que exige políticos responsáveis, que sejam maduros, que se evitem os festivais de mentiras e hipocrisia que marcaram as campanhas eleitorais recentes. É preciso alertar a população que milagres só existem na igreja. Na política e na vida de um país não tem milagre e, portanto, se alguém aparecer com cara de santo oferecendo milagre, desconfie.