Revista ABCFarma
Fundada em 1990, a Interfarma – Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa – reúne hoje 56 empresas, responsáveis pela inovação em saúde no Brasil. Juntos, esses laboratórios respondem por 82% dos medicamentos de referência no mercado brasileiro e por 33% dos genéricos no canal farma. Seu atual presidente, o jornalista gaúcho Antônio Britto -ex-deputado federal, ex-ministro da Previdência Social e ex-governador do Rio Grande do Sul – tem se empenhado em diversas frentes pela disseminação do conceito de inovação, com ética corporativa e responsabilidade social. Mas não tem sido fácil, diante dos entraves burocráticos e fiscais que a indústria encontra hoje pela frente. Nesta entrevista exclusiva, ele analisa os desdobramentos da crise para o setor -e as perspectivas de melhores dias para o Brasil que pesquisa e inova, em prol da saúde.
Como foi o ano de 2015 para os associados da Interfarma?
Há duas formas de se examinar 2015. Quando se compara o ano farmacêutico com o dos demais segmentos da economia, é evidente que ele se saiu bem melhor. Por quê? Porque a população não pode deixar de comprar remédios – até porque o setor público não oferece a medicação necessária. Agora, quando se compara o setor farmacêutico de 2015 com o de anos anteriores, aí a resposta é outra: o ano foi pior. Ou seja: depende do fator comparador que você usa. Nossa avaliação é que o setor farmacêutico segue resistindo às crises porque, por natureza, tem um tipo de demanda que não deixa de existir, pela importância da saúde – mas está sujeito hoje a um conjunto de dificuldades que vem crescendo.
A indústria de pesquisa, que é o universo da Interfarma, por definição necessita de tecnologia muito mais avançada – e isso envolve a burocracia do Estado. Isso não é um fator complicador, neste momento de crise das instituições?
Nós estamos num grande impasse – que, infelizmente, vai piorar nos próximos anos. O país colocou na Constituição que a saúde deve ser gratuita, para todos. E o país não gera o novo – em equipamentos médicos e medicamentos. Não gera o novo, mas precisa do novo, porque os médicos prescrevem o tratamento novo. Se não tem, mas precisa usar, compra – e compra hoje com o dólar a mais de quatro reais. Cria-se a Escolha de Sofia: ou se viabiliza o acesso ao novo, com isso comprometendo a balança comercial e o orçamento público, ou se corta o acesso ao novo – mas, fazendo isso, corta-se também o cumprimento da Constituição.
O que dá margem à chamada judicialização da saúde – com as pessoas entrando na Justiça. E ganhando…
Sim, ao se cortar o cumprimento da Constituição, se escancara a janela da judicialização. Vivemos hoje num Triângulo das Bermudas – paga-se o novo com um dinheiro que não existe ou se descumpre a Constituição. Enquanto não for rediscutida, com muita seriedade, a estratégia de acesso à saúde universal, vamos estar no meio desse triângulo, com soluções sempre falsas.
A solução depende do Congresso?
É uma questão do Brasil. Não adianta a indústria botar o dedo na cara das farmácias; as farmácias colocarem o dedo na cara dos hospitais; estes, no governo; o governo, no Congresso. É um problema do país. Mas é supersimples: o que o Brasil gasta com saúde não é pouco; mas o que o Brasil gasta com saúde pública é menos da metade. Números: para 25% da população, as pessoas que têm seguro-saúde, gastamos 55% da verba da saúde. Para os restantes 75% da população, que depende dos serviços públicos, gastamos 45%. Pode-se colocar jesus Cristo para administrar esses números que não vai dar certo – ainda que exista corrupção e ineficiência. Ao melhor estilo brasileiro, escrevemos as coisas com facilidade e poesia: "Saúde é um direito de todos e um dever do estado". Estou muito à vontade nessa crítica, porque fui um dos que escreveram isso. A gente coloca lá – e não cuida de criar os mecanismos que viabilizem isso. E aí o SUS, coitadinho, fica na obrigação de entregar excelência.
Como as indústrias associadas à Interfarma se situam nesse impasse?
Estamos muito preocupados com o desperdício do Brasil em matéria de inovação. Um país com a ciência que o Brasil tem hoje não pode ser tão pequeno em ciência quanto o Brasil é. 0 Brasil é o sexto mercado farmacêutico mundial e um país com ilhas de excelência públicas e privadas e, no entanto, é medíocre em termos de descoberta do novo. O que a Embrapa fez em agricultura, aproximando-se das necessidades nacionais e do setor privado, o Brasil não fez praticamente nada em matéria de saúde. A Academia vive de costas para a empresa. A empresa detesta o risco. E inovar é correr riscos – é pesquisar o que não sabe, para ter resultados que não conhece. E o governo parece detestar a inovação, porque a burocracia é infernal. Há progressos localizados. Mas, como a inovação é uma corrida mundial, ficamos para trás. Acho que uma palavra define o país nessa área, hoje: o Brasil está se desperdiçando. E isso agrava a nossa dependência e a nossa dificuldade de oferecer acesso universal à saúde.
Doze estados aumentam este ano as alíquotas do ICMS para os medicamentos. Essa questão entra na agenda da Interfarma este ano?
Um exemplo concreto de como isso chega à nossa agenda e sobretudo à casa das pessoas. O governo tem um programa, muito bem-sucedido, chamado Farmácia Popular. Deu tão certo que beneficia em torno de 25 milhões de pessoas. Mas não pode crescer porque falta dinheiro. Um agravante: o programa que distribui remédios de graça, mantido pelo governo federal, paga imposto para os governos estaduais. Repito: para distribuir remédios de graça. Essa é a obra-prima da estupidez burocrática! Pelos nossos cálculos, sem esse imposto o programa atenderia mais dois milhões de pessoas – ou dois milhões a menos de pessoas indo aos postos de saúde para pegar remédios. Não é possível que o Brasil tenha uma burocracia fiscal no limite do non sense. Temos dificuldade de explicar essas coisas a um estrangeiro.
A questão do prazo de validade não se enquadra aí?
É um segundo exemplo. As indústrias olham para seus estoques e verificam que há centenas de lotes que se aproximam do vencimento. Elas não podem mais comercializar esses remédios para as farmácias se o prazo for inferior a seis meses – corretamente, até porque as farmácias não têm por que assumir esse risco. Mas a indústria não doa. Por quê? Porque para doar tem de pagar imposto… Deus do céu! Tem que pagar imposto para doar remédios a uma Santa Casa, que está quebrada? Isso ofende o bom senso. Estamos trabalhando muito para tentar consertar isso.
Voltando ao aumento das alíquotas do ICMS neste exercício. De que modo isso preocupa a Interfarma?
Qual será a conseqüência disso? A indústria e as farmácias, obrigatoriamente, vão reduzir suas margens de desconto. Num país onde 75% dos medicamentos são pagos pelo seu João e por dona Maria porque o programa oficial de doação ou reembolso não vai além dos demais 25%, estamos agravando a questão do acesso. A conseqüência disso? Aumenta a fila no setor público. 0 governo acha que economiza com uma mão – e gasta o triplo com a outra. É um monumento à estupidez.
E a tentativa de ressuscitar a CPMF?
Ainda há poucos dias, a presidente reforçou que a volta da CPMF é essencial para a saúde pública. Só que o projeto foi enviado para o Congresso sem estar vinculado à saúde. Não há nenhuma garantia de que a nova CPMF vá melhorar a saúde – o que nos impede até de estudar a questão. A situação da saúde é tão grave que qualquer receita adicional seria positiva.
Mas essa não é a discussão que deve ser feita neste momento. Repito: a leitura do projeto da CPMF não diz que os recursos se destinam à saúde. Se quando era o dinheiro não chegou, imagine agora.
O presidente da Interfarma passa boa parte de seu tempo em Brasília, lidando com questões burocráticas?
O setor farmacêutico é o mais regulado da economia brasileira. O único tabelado. 0 papel de Brasília em nosso setor é maior que em qualquer outro. Neste momento, essa relação se dá em três níveis. No ambiente da Anvisa, e é preciso reconhecer isso, houve e há um esforço para desburocratizar e melhorar processos e prazos médios, com iniciativas modernizadoras – embora ainda estejamos longe do razoável. No segundo front, o do Ministério da Saúde, se dá uma luta pela sobrevivência – de ambos: do Ministério e nossa. Falta hoje dinheiro para fechar a conta de hoje. Não se sabe se haverá o medicamento para depois de amanhã. Há lutas contra tristes epidemias, como a do zika vírus. É uma luta angustiante, de parceria com o Ministério, na qual infelizmente não estamos conseguindo vislumbrar o amanhã. As conversas sobre o futuro estão adiadas. A agenda de hoje é a de ontem. E, num terceiro nível, há o Congresso – uma espécie de simbiose das agendas. Parte do Parlamento gostaria de debater o futuro – mas os problemas imediatos congestionam a pauta. Com o Congresso temos uma atitude de subsidiar os debates com dados técnicos.
O ano de 2016 começou com essas mesmas frentes, não? Alguma possibilidade de ser melhor que 2015?
Eu não consigo imaginar que o Congresso possa aprovar neste ano que só tem um semestre, por causa das eleições municipais, grandes e profundas reformas em qualquer direção no campo da saúde. Não consigo imaginar que 110 Ministério da Saúde sobre gente e recursos para mudar o futuro quando é preciso salvar o presente.
Os governos têm uma dívida alta com as empresas filiadas à Interfarma por conta de medicamentos comprados e não pagos, não?
Um dos reflexos da crise é o seguinte: o governo não pode parar de comprar medicamentos. Mas pode parar de pagar… E a indústria não pode se recusar a entregar. Ao melhor estilo brasileiro, a empresa vende – mas não recebe. Das 24 indústrias consultadas por nós, 15 tinham a receber do governo em torno de um bilhão de reais. A indústria tem consciência de sua responsabilidade, mas tem limites.
Apesar de todos esses problemas, ainda dá para fazer pesquisa de medicamentos no Brasil – e com cidadania corporativa, como é a meta da Interfarma?
Apesar da crise, a indústria tem o compromisso permanente de modernizar a gestão – e cada vez mais assumir compromissos éticos. Aliás, não é "apesar de tudo", mas "por causa de tudo". Na minha opinião, o melhor traço de distinção de uma empresa é tratar o consumidor e o paciente com respeito. Porque isso não nasce de lei – mas de um profundo amadurecimento do consumidor e do paciente, que, cada vez mais, sabe o que quer. Apesar de toda a bagunça brasileira, há um ser novo neste país. Com mais informação e mais recursos de proteção e defesa disponíveis. Só quem se der conta disso vai para a prova seguinte no vestibular da sobrevivência.
As indústrias associadas da Interfama certamente continuam fazendo pesquisas de ponta, em busca de medicamentos mais inteligentes e mais eficazes. Qual é o controle da Interfarma sobre o andamento desses estudos?
Há gráficos mostrando o que está para ser lançado, o que está praticamente pronto, o que ainda está em fase de incerteza e o que está no ponto inicial de pesquisa. Há cinco anos, havia um quase esgotamento do que estava pronto para ser lançado e um final de proteção patentária. Foi um momento em que alguns, apressadamente, afirmaram que a indústria de pesquisa entraria em crise – porque medicamentos blockbuster estavam indo para domínio público e não havia novas moléculas para lançar. Mas essa indústria é tão dinâmica e a ciência tão surpreendente que hoje, cinco anos depois, há na fila para serem lançados produtos biológicos revolucionários, de altíssima complexidade. Houve, por parte da indústria, um verdadeiro sopro na capacidade de produzir novidades.
O ano de 2016 vai sentir um sopro de otimismo?
Este é um ano que está perdido do ponto de vista de apresentar resultados positivos em termos de volta do crescimento e recuperação do emprego. Mas este ano ainda pode gerar o início de uma reação para produzir resultados em 2017 ou 2018. Esse início de reação depende de um quase milagre: a capacidade da política em se reinventar. Política, nesse caso, significa o poder de buscar soluções onde aparentemente não há nenhuma. Esse é o papel histórico da política: há um paredão e parece não haver saída. E alguém, com criatividade e liderança, diz: "Vamos por ali" – com isso criando frestas para o Brasil passar. A verdade é que o país está dentro de um paredão e a política cria outros paredões. Portanto, o início da reação depende de uma mudança com a qual ainda estou pessimista – porque depende de uma inacreditável mudança do Palácio ou do Congresso.