
“Engessamento na ciência me fez deixar o Brasil”, diz a Neurocientista Suzana Herculano
Folha de S.Paulo
Jornalista: REINALDO JOSÉ LOPES
"Não dá mais para fazer ciência de ponta no Brasil", diz a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que está prestes a trocar o Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) pela Universidade Vanderbilt, em Nashville (EUA). “Não na área biomédica”, pondera Herculano, para quem a crise de financiamento da pesquisa no país foi o “estopim” necessário para aceitar o convite da instituição americana.
A pesquisadora e colunista da Folha define com uma única palavra tudo o que, na sua opinião, está errado com o jeito brasileiro de fazer ciência e que fortaleceu sua decisão de deixar o país: engessamento. “É um engessamento que se aplica a vários aspectos —à questão salarial, a essa ideia de isonomia que é maldita para a academia.” O anúncio de sua mudança foi feito à revista “piauí’.
Autora de best-sellers sobre neurociência e de estudos de impacto sobre como a arquitetura do cérebro humano surgiu, Herculano conversou com a Folha pouco antes de partir para Nashville com um dos filhos, de 12 anos — seu marido já está lá, e seus cachorros estão a caminho da cidade do sul dos EUA. Confira a entrevista.
Folha – A negociação sobre sua ida para os EUA já está acontecendo faz bastante tempo, certo?Suzana Herculano-Houzel – Sim, o processo começou no ano passado, em setembro.
Quando surgiu a possibilidade de uma vaga, começaram os procedimentos, que incluem uma entrevista, palestras que eu fui dar por lá, minha visita aos departamentos da universidade — é um processo complexo porque é uma vaga com estabilidade.
No meio desse trâmite, em nenhum momento a sra. se sentiu tentada a olhar para trás e reconsiderar a decisão de sair do país?
Olha, se eu trabalhasse numa universidade americana e estivesse descontente por qualquer razão, ou mesmo se estivesse contente e fosse sondada por outra instituição, haveria maneiras de eu conversar com a direção da universidade e perguntar: vocês acham que é do interesse de vocês cobrir a oferta, criar um caminho de negociação? Aqui, por outro lado, o que vale para mim vale para todo mundo, em salários, benefícios e condições de trabalho.
Sempre foi tudo muito claro: o que você tem é isso e acabou. Se existe alternativa, ela está do lado de fora.
Houve gente que sugeriu que eu tentasse ir para São Paulo, onde pelo menos há a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo]. Aí o caminho seria pedir transferência da UFRJ para a Unifesp [Universidade Federal de São Paulo].
Mas isso não muda nada. Eu teria um laboratório um pouco maior, talvez, mas a questão do salário, da verba para pesquisa e, principalmente, da dificuldade de usar os recursos continuariam sendo praticamente as mesmas.
Pensando a longo prazo, o que pesou mais na sua decisão?
Em uma palavra: engessamento. É um engessamento que se aplica a vários aspectos —à questão salarial, a essa ideia de isonomia que é maldita para a academia, que tem como princípio a busca por conhecimento e o fato de que pessoas diferentes têm capacidades diferentes.
Fora daqui, você pode incentivar isso para poder recompensar o trabalho bem feito e, inclusive para estimular as gerações seguintes. Por outro lado, há avaliações e riscos que eu corro se meu desempenho não é satisfatório.
No Brasil, o engessamento é para cima e para baixo — além de haver pouca recompensa para o mérito, falta também o risco de punição, de você perder o seu posto caso não produza.
No nosso instituto a gente tentou implementar mecanismos de avaliação da qualidade das aulas pelos alunos, ou da produção de pesquisa feita por pares [outros cientistas] externos, mas até onde sei as iniciativas nunca davam em nada. Por acaso você vai poder tirar um professor pouco produtivo do seu laboratório? Não vai. Esse engessamento da carreira tira toda a motivação para se empenhar a produzir mais.
Há um engessamento administrativo.
Os US$ 600 mil que recebi de um prêmio dos EUA [da Fundação James Mcdonnell] são administrados pela UFRJ, ou seja, vão para a conta da União. Queria usar esse financiamento para contratar pessoas para um projeto sobre a relação entre metabolismo e número de neurônios, mas nunca consegui porque não dá para contratar sem concurso público.
Volta e meia eu tenho de pedir “compra por favor US$ 10 mil desse anticorpo” e preciso arranjar cartas do fabricante atestando que só eles fabricam aquilo. Se você tem a sorte de usar algo que só uma empresa fabrica no mundo, como a gente, maravilha, não precisa sofrer com licitação. Mas ainda assim leva no mínimo três meses de trâmite, mais impostos absurdos, mais burocracia.
Enquanto isso, nossos concorrentes —e ciência tem concorrência, sim—podem pegar o telefone, ligar para a empresa e, no dia seguinte, o produto está na mesa deles, não estou exagerando. Isso quando a empresa não tem uma sala dentro da universidade e você pode ir até lá, abrir a geladeira e pegar o que precisa.
Sem a crise econômica atual, a sra. acha que teria saído do Brasil mesmo assim?
Eu diria que a crise foi um estopim que facilitou a negociação do lado americano.
O convite partiu deles, então?
Sim, eles consideram isso como “opportunity hire” [algo como “contratação de oportunidade”], quando você identifica uma pessoa que quer trazer por causa do perfil dela e do que ela pode trazer para a universidade. Essa é mais uma amostra do sistema flexível e ágil que eles implementaram por lá.
Qual o risco de as pessoas interpretarem sua atitude como algo “antipatriótico”, como de alguém que está “dando uma banana” para o Brasil?
Pelo que tenho visto nas redes sociais, as reações são maciçamente de apoio. A ciência não tem fronteiras. O importante é produzir conhecimento. O que as pessoas estão dizendo, em geral, é: “Vá sim, aproveite que querem te dar condições boas, mas não se esqueça da gente”, tenho esse gosto muito grande pela divulgação científica e acho que a ciência é patrimônio da humanidade.
A única grande barreira é não poder gerar mais conhecimento, e infelizmente não dá mais para conseguir fazer ciência de ponta aqui — não em biomédicas, pelo menos.
O que você tem são ilhas de excelência, como o trabalho do Stevens [Rehen, também da UFRJ], que continua como professor da UFRJ mas também recebe recursos da iniciativa privada [do Instituto d’Or de Pesquisa e Ensino].
Sei que não é por falta de tentativa de apoio da Faperj [fundação estadual de amparo à pesquisa do Rio]. O Jerson Lima Silva [diretor científico do órgão] é um cara extraordinário, empenhado, bem-intencionado. Mas ele depende de recursos que vêm do Estado, e se o Estado já não libera nada, não há o que se fazer—ainda estamos esperando recursos prometidos no final de 2014.
O que termina de piorar a situação, sobretudo no caso do CNPq [principal órgão federal de apoio à pesquisa], é a prática nociva, ainda que bem-intencionada, de pulverizar recursos, financiando o maior número de projetos com algum dinheiro que seja.
Mesmo os mais bem avaliados receberão um terço do que pediram, e note que o teto dos pedidos já era de apenas R$ 120 mil para três anos.
Esse teto limita o tipo de perguntas científicas que você pode fazer. Falta coragem de desagradar a algumas pessoas que talvez estejam há décadas fazendo coisas que não têm ambição e de ter um foco em projetos excelentes, que precisam de condições reais para fazer seu trabalho. O jeito de se fazer ciência no Brasil precisa ser completamente repensado e repaginado.