Revista Você SA
Os investimentos em empresas de tecnologia só crescem. E na saúde não é diferente. Segundo um levantamento global da consultoria Deloitte, os aportes nos negócios inovadores desse segmento terão incremento de 15,8% nos próximos três anos. Até 2022, serão injetados 280 bilhões de dólares por ano em companhias que apresentarem soluções para que as pessoas vivam mais — e melhor.
De fato, o mundo carece de idéias inovadoras e escaláveis que supram as necessidades médicas de populações carentes e periféricas. Um estudo conduzido pela Comissão de Saúde Global de Alta Qualidade, financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates, estima que 1,6 milhão de cidadãos em países de renda média e baixa morram por ano por falta de acesso a serviços médicos. No Brasil, embora os gastos com saúde consumam 8,9% do PIB, falta atendimento em centenas de pequenos municípios distantes dos centros urbanos.
Nesse contexto, ganha especial destaque a telemedicina — atendimento a distância mediado por plataformas tecnológicas. O setor ainda é considerado digitalmente atrasado, já que a maneira como os serviços de saúde são oferecidos mudou pouco nas últimas décadas. Para ser atendido, seja no sistema público, seja no privado, a pessoa precisa agendar consulta, marcar horário de acordo com a disponibilidade do profissional e sair de casa para ir até a clínica ou o hospital. “O médico tradicional está para o taxista como o motorista de Uber está para a telemedicina. É preciso mudar a forma de trabalhar, acompanhando as necessidades do mercado e dos pacientes. Cada vez mais os tratamentos vão se adequar a um modelo que mescla o mundo real com o virtual”, diz Enrico De Vettori, responsável pela área de saúde da consultoria Deloitte.
Mas, se a transformação, por um lado, é inevitável, por outro, envolve grandes desafios. A regulamentação é a principal delas. A própria telemedicina tem gerado discussões acaloradas no Brasil. O conceito ganhou notoriedade por aqui em fevereiro deste ano, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) propôs liberar a prática no país. Apesar de, em tese, muitos médicos já utilizarem telefonemas, chamadas de vídeo ou mensagens no WhatsApp para esclarecer dúvidas, conselhos regionais, sindicatos médicos e associações de especialistas se manifestaram contra a telemedicina. Apontam, entre outras razões, que o atendimento virtual enfraquece a relação entre médico e paciente e alegam que é necessário garantir, num primeiro contato, o exame clínico presencial. Após a polêmica, o CFM voltou atrás e abriu consulta pública sobre o assunto (ainda não há parecer).
Em países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá e Israel, a medicina a distância já é realidade. Nesses lugares, o paciente compra uma consulta pelo aplicativo e fala com o médico em tempo real por vídeo. Além disso, dispositivos móveis são usados para aferir a pressão arterial, fazer eletrocardiograma e até examinar a garganta. Com isso, o médico faz uma análise remota e prescreve a medicação, que pode ser enviada diretamente a uma farmácia ou ser entregue em casa.
Segundo Chao Lung Wen, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e chefe da disciplina de telemedicina, a modalidade só funciona quando integra o raciocínio médico aos recursos digitais para aumentar a assertividade do diagnóstico. Apesar das ressalvas, ele acredita que essa vertente é um caminho sem volta. “Ela promove maior agilidade e acessibilidade”, diz.
Na visão do especialista, sair de casa para enfrentar um pronto-socorro abarrotado só deve acontecer em casos de real emergência. O especialista exemplifica como problemas simples poderão ser solucionados a distância: usando um smartphone com otoscópio agregado, os pais examinam o ouvido da criança, e a imagem é compartilhada em tempo real com o pediatra, que dá orientação por teleconferência. “Até 2025, a incorporação da telemedicina na prática diária exigirá novas competências e familiarização no uso de tecnologias. Os profissionais precisam fazer cursos de atualização na área”, diz Chao. Para ele, conhecimento em ética e segurança da informação também será fundamental para quem for trabalhar com saúde no futuro.
Forca irrefreável?
Enquanto alguns defendem que a regulamentação excessiva desencoraja a inovação do setor, outros afirmam que a liberação sem freios da tecnologia na medicina pode causar risco de morte (aos pacientes) e desemprego (entre os profissionais). Os argumentos contrários vão da falta de segurança no diagnóstico ao fato de o atendimento digital ser menos humano que o pessoal.
Enquanto as discussões acontecem, a evolução tecnológica segue seu próprio ritmo. Hoje, órgãos artificiais são produzidos em impressoras 3D, adesivos eletrônicos efetuam eletrocardiograma, avaliam a função respiratória e conferem o teor de açúcar no sangue, transmitindo os resultados por meio do Bluetooth, e as casas já monitoram a saúde de seus moradores. Sim. Engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massa-chusetts (MIT), nos Estados Unidos, modificaram um roteador sem fio de modo a capturar sinais vitais e o padrão de sono das pessoas que vivem
ali. Os robôs-enfermeiros também estão a todo vapor. Em hospitais no Japão, eles fazem triagem dos pacientes, indagando os sintomas e acessando os registros médicos disponibilizados na internet — há até um humanoide capaz de confirmar por ultrassom a veia mais adequada à retirada de sangue ou colocar um acesso intravenoso. Em alguns países da Europa, os robôs são usados como cuidadores, para erguer e mover pacientes, e assistentes de fisioterapia, para auxiliar nos exercícios físicos.
Mesmo com tudo isso, de acordo com Anurag Gupta, analista da consultoria de mercado Gartner, os funcionários de carne e osso devem continuar relevantes. “A capacidade da maioria dos profissionais de saúde será reforçada pelo digital, não substituída”, diz.
Mão de obra especializada
Estudiosos acreditam que no futuro a medicina dever focar menos o tratamento de doenças e mais a prevenção. E não faltará oportunidade para médicos capazes de conduzir essa mudança, inclusive aqueles com veia empreendedora e idéias para solucionar gargalos.
Para Giovana Tarnovschi, gerente sênior da Michael Page, consultoria de recrutamento de São Paulo, houve aumento no último ano da demanda por posições em empresas de saúde com foco em inovação e tecnologia. “Quem atua na saúde e tem capacitação e experiência nessas áreas já recebe um salário 30% maior”, afirma. Caio Arnaes, gerente sênior de recrutamento da Robert. Half, outra consultoria que registrou alta nas vagas do setor de saúde, descreve as funções com aumento de procura: “Há posições de big data, desenvolvimento de software e gerenciamento de projetos”. Além do pessoal de TI, entram na lista especialistas em genética, cuidadores de idosos e geriatras. Isso porque, em 2030, haverá o mesmo número de crianças e idosos, de acordo com projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Também é consenso entre os recrutadores que crescerá a busca por médicos que dominem a área de e-care (gestão e promoção de saúde) e tenham conhecimento técnico em dispositivos de atendimento residencial. “O perfil que as empresas da saúde buscam é o do médico que vai além da medicina, enxergando a importância das áreas de apoio do hospital, como tecnologia, finanças e marketing”, diz João Mareio Souza, CEO da Talenses Executive, empresa especializada em recrutamento de alta liderança. No futuro, o médico de jaleco branco e estetoscópio no pescoço deverá ficar apenas na memória.