Artigo: A tarefa da ANVISA deve ser “dar vida” às RDCs

ANVISA lança livro que traz posicionamento da INTERFARMA

Texto de Antônio Britto

Introdução

Pela primeira vez, em 15 anos, o setor produtivo farmacêutico foi convidado a dialogar e a apresentar aos novos servidores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a agenda da indústria farmacêutica e os seus desafios. A iniciativa fez parte do Programa de Formação Aplicada dos Servidores da Anvisa, realizado pela Agência, em parceria com o Movimento Brasil Competitivo (MBC), em maio de 2014.

Além do encontro, a Agência concedeu ainda a oportunidade a todos os palestrantes de fazer parte dos Anais do Programa, por meio de artigos científicos. Portanto, o objetivo deste texto é registrar a apresentação de Antônio Britto, presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), como forma de disseminar as mensagens e expectativas da entidade e contribuir para incentivar o diálogo com todos os servidores da Anvisa, sejam eles recém-chegados ou veteranos.

O papel regulador

Em primeiro lugar, a Interfarma quer afirmar com muita convicção: o papel do regulador, especialmente sanitário, tem que ser exercido com rigor. Em outras palavras, a Interfarma não defende a redução de exigências do ponto de vista técnico, não quer nenhum tipo de facilidade para a autorização de estudos, obtenção de registros ou licenças. A Interfarma acredita que o papel do regulador é ser rigoroso, porque está vinculado à preservação da qualidade do padrão sanitário no país, em particular dos produtos biológicos, que trazem um novo desafio a todos, muito mais delicado e muito mais complexo.

A Interfarma constata ainda que, nesses 15 anos, a Anvisa conquistou respeito pela qualidade do seu corpo técnico, ainda que fosse um grupo muito pequeno, e pelo rigor da regulação que escreveu. A Anvisa passou a primeira fase de sua existência produzindo uma regulação rigorosa e de elevado padrão, fato que protege o cidadão e eleva o nível de atuação do regulador, qualificando a indústria farmacêutica e colocando o país em um excelente nível de segurança e de qualidade, inclusive para poder disputar nos mercados internacionais.

Essa avaliação leva à conclusão de que é necessário afastar a ideia de que o papel preferencial da Anvisa deva ser o de servir como braço de políticas dos governos. O principal papel da Anvisa é o de assegurar a qualidade sanitária no país. A participação inevitável, e desejável, da Agência no apoio aos projetos brasileiros de desenvolvimento não pode preceder, substituir ou preterir a preservação da qualidade sanitária. Um exemplo concreto é a questão da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP). O apoio às PDPs é importante, mas tão importante quanto as PDPs é a garantia de que as empresas envolvidas irão manter a qualidade e cumprir a regulação sanitária.

O rigor só será efetivo se for baseado em decisões técnicas. Não há rigor, por exemplo, se um dos responsáveis, um técnico de qualquer agência, se submeter a outro interesse que não o nível do padrão sanitário. Por isso, para manter esse rigor, todos nós temos uma tarefa comum: estabelecer um “cordão de proteção sanitário”, que proteja a Anvisa de qualquer influência ou interesse vindo da indústria, de partidos, de onde quer que seja, e que ponha em risco a questão sanitária. Se esse ambiente não for assegurado, o rigor não consegue ser exercido.

O maior elogio que a Anvisa pode receber é ser técnica. E, nesse contexto, ser técnica quer dizer: ser voltada ao interesse público. E o que quer dizer público? Público quer dizer: cumprir com a missão da Agência, especialmente com a defesa sanitária.

Outro ponto a ser abordado, chamado aqui de “castelos”. O rigor, no entendimento da Interfarma, não se confunde com se manter longe do diálogo ou da discussão. Um técnico só se aprimora quando procura ouvir, saber, explicar e dialogar. Quando o técnico se encastela, se fecha, o seu nível técnico pode se empobrecer e se desatualizar, fazendo o país inteiro perder com a falta de diálogo. O poder do técnico só se fortalece quando ele desce ao parlatório, quando evita decisões sumárias, que ao fim custarão mais a todos, inclusive aos técnicos.

Se compararmos o técnico a um juiz, qual é o procedimento? Antes de dar a sentença, o juiz é obrigado a ouvir as partes, considerar as posições de cada um dos envolvidos e, depois, fazer uma avaliação com base na sua consciência, no seu conhecimento e na lei. E é do encontro desses três critérios que nasce a boa sentença. Se esse procedimento vale para os juízes, para os ministros do Supremo, entendemos que os técnicos se fortalecem ao estabelecer processos onde haja o diálogo. Portanto, o regulado aprende, a Agência acerta mais, o ambiente regulatório torna-se mais claro e mais seguro, se não houver “castelos”.

E apenas para recapitular, já que foram mencionadas as palavras “rigor” e “castelo”, agora é a vez da palavra “essencial”. Eu fui constituinte, então bato no peito uma, duas, três, quatro vezes, pelo número de palavras inúteis que ajudei a colocar na Constituição. Às vezes, leio e penso: meu Deus, o que é que isto aqui quer dizer? Mas essa é uma tradição cultural brasileira.

A regulação da Anvisa também é feita no Brasil, também é feita por brasileiros e é também a soma de excelentes colocações técnicas, absolutamente essenciais, cercadas de uma volúpia por detalhes insignificantes, às vezes até inúteis, do ponto de vista sanitário. Então eu acho, e estou aqui falando no momento em que entram na Agência quase 300 técnicos, que se entrarem mais dois mil técnicos, ou se entrarem mais 20 mil técnicos, e os processos na Anvisa não forem alterados, continuarão faltando técnicos.

A revisão dos processos, em minha opinião, passa por uma questão muito simples:

isto é importante do ponto de vista sanitário? Se a resposta é positiva, a conduta deve ser regular e agir com o máximo de rigor e com o máximo de técnica. Agora, qual a influência ou a importância de centenas de detalhes, de questões secundárias que vão para a regulação?

Quanto tempo e recursos são dedicados a isso, ao que não é importante nem tem a ver com qualquer risco sanitário? Então, estou usando esse raciocínio para dizer o seguinte: a força da  Anvisa vem de cuidar bem do essencial. Quanto eu diluo a minha força, tratando o essencial e o desnecessário da mesma forma, sabe o que é que eu estou fazendo? Eu não estou cuidando do essencial direito.

A Interfarma tem consciência dos problemas da Anvisa, da limitação ou insuficiência de muitos dos seus recursos materiais, como a informática, por exemplo. Até por isso, pela imensa responsabilidade da Anvisa e pela carência de recursos, a Interfarma insiste que não quer menos rigor, quer menos burocracia.

A entidade acredita que a Agência inicia agora uma nova fase. E o sucesso da Anvisa, de agora em diante, está relacionado à capacidade dos novos técnicos e dos antigos servidores em “darem vida” às Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs). A tarefa quase interminável de editar a regulação está basicamente concluída, mas a maioria das RDCs importantes ainda não foi colocada em prática, na vida real.

A Interfarma reconhece que a Anvisa, em 15 anos, produziu muitos textos de qualidade, ainda que com detalhes nem sempre necessários, e aproveita para reforçar o pedido para que essa regulação agora seja realmente aplicada e fiscalizada, que o que está no papel seja cumprido e “ganhe vida”. Apenas para exemplificar: no papel, todo medicamento comercializado no Brasil é bom, pois teve o pedido de registro encaminhado, analisado e aprovado. Contudo, a Anvisa tem pela frente todo um trabalho para efetivamente estabelecer a farmacovigilância no país.

Superar a enorme distância
entre a dedicação e o rigor utilizados na análise para a aprovação dos dossiês e a fiscalização pós-mercado. Ou seja, tudo que está sendo comercializado/consumido deveria estar sendo fiscalizado, porém isso ainda não acontece.

Outro exemplo é a prescrição médica. A Anvisa define que há algum risco sanitário em relação a um determinado produto e passa a exigir tarja na embalagem e, consequentemente, se tem tarja, é exigida a receita. Entretanto, é de conhecimento geral que não há respeito à prescrição. Portanto, a questão da tarja vermelha ou preta, mais uma vez, é um exemplo de algo resolvido nas RDCs, mas que não é colocado em prática, não se torna realidade no país. Há poucos meses, a Interfarma divulgou uma pesquisa que comprova o nível de automedicação no Brasil e o fato de que o médico perde cada vez mais importância na decisão e na prescrição dos medicamentos.

Para finalizar, mais três temas que a Interfarma entende como fundamentais. O primeiro é a pesquisa clínica. Sem ela, não há inovação; o país não detém tecnologia; os brasileiros são privados do acesso a terapias modernas e eficientes; e a balança comercial é prejudicada.

O segundo tema está relacionado aos prazos. A Agência tomou decisões muito corretas nos últimos tempos, tem se mostrado muito preocupada e está procurando reduzir a burocracia, por meio da parceria com o Movimento Brasil Competitivo (MBC). A direção é correta, mas o atraso ainda é muito grande. Para ilustrar, foi publicada recentemente na imprensa matéria sobre a fila de pós-registro de medicamentos novos: 1.873 petições aguardando por análise, sem incluir similares e genéricos. Obviamente, este desafio não vai ser resolvido reduzindo-se o rigor, mas provavelmente também não será solucionado com a manutenção de exigências burocráticas desnecessárias.

O terceiro e último tema é a rastreabilidade de medicamentos, um golpe no falsificador, no ladrão e no sonegador de impostos e que, por conta dos avanços neste ano de 2014, está pronta para se tornar um grande sucesso.

Para finalizar, a Interfarma agradece por esta oportunidade histórica de dialogar com os técnicos da Anvisa. E reitera o compromisso de manter esse convívio profissional de forma extremamente ética e respeitosa.

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